Em 1996, o já aclamado como quadrinista Neil Gaiman adentrou no mundo da televisão com o seriado Neverwhere. A série foi exibida pela BBC britânica, obviamente no Reino Unido, mas não teve sucesso (talvez Gaiman tenha agora com Deuses Americanos).
Neil Gaiman, por sua vez, resolveu lançar um livro adaptando a história
da série quando ela ainda estava no terceiro episódio. O programa
acabou tendo apenas 6.
Diferente da série, o livro Neverwhere, que foi o segundo de Neil Gaiman a ser lançado (antes ele havia escrito Belas Maldições em parceria com Terry Pratchett), fez um enorme sucesso e já foi adaptado para quadrinhos, teatro e áudio book.
Não assisti a série e nem li o
quadrinho. Só sei que no quadrinho não tem o prólogo do livro, e na
série, uma cena do Mercado Flutuante (falarei sobre ele), que deveria
ser gravada na loja de departamentos Harrods, teve que ser gravada na
Usina Termelétrica de Battersea, uma vez que os gerentes da Harrods não
aceitaram que gravassem lá.
No Brasil, ele foi publicado pela editora Conrad com o nome Lugar Nenhum. Inclusive gostaria de ressaltar que achei legal não terem traduzido os nomes das personagens Door e Hunter. E eu li a versão e-book.
A história se passa em dois mundos. O nosso mundo e o submundo.
Não é um submundo tipo o inferno nem nada do tipo. É um submundo urbano
dentro do nosso mundo. Quem faz parte desse submundo não pode ser visto
por quem não faz. São imperceptíveis. Se alguém do submundo falar com
você, você ouvirá e também verá quem falou. Pode até responder, mas
alguns segundos depois já terá esquecido tudo (como um Silence de Doctor Who).
Esse submundo é um reflexo sombrio do nosso mundo. Ele é composto, em
grande parte, por locais subterrâneos, como esgotos e estações de metrô,
mas também agrega os lugares esquecidos pelo outro mundo. No decorrer
da leitura descobrimos que ele vai além do que se imagina.
E como reflexo do nosso mundo, o submundo também possui cidades. E em Lugar Nenhum, conhecemos a Londres de Baixo, que – não preciso nem dizer – fica em baixo da Londres comum.
O livro além de ser uma boa aventura de fantasia,
é um passeio por Londres. A trama nos leva a vários pontos da cidade (e
várias estações de metrô). Muitas vezes em que o texto citava algum
lugar pelo nome, eu ficava voando por não conhecer o lugar, e nem querer
procurar no Google pra ver como era.
Eu fiquei imaginando uma Recife de
Baixo, mas só consegui pensar numa cena que vi uma vez, onde estavam
trombadinhas felizes tomando banho no rio Capibaribe.
Inclusive, uma coisa notável é que os
habitantes da Londres de Baixo são geralmente muito sujos. Além de não
haver relatos de ninguém tomando tanho, nem se limpando, nem nada, Neil
Gaiman descreve claramente que as pessoas são sujas.
Ainda falando sobre a Londres de Baixo,
cito mais uma vez que ela é um reflexo sombrio e distorcido da “Londres
de Cima”, e seus habitantes são dos mais variados. Existem os que são
apenas habitantes, existem clãs, famílias, e existe o povo do esgoto. Ninguém quer chegar perto do povo do esgoto, pois fedem muito.
E ainda clicando na tecla “reflexo do
mundo real”, os clãs, famílias e sei lá mais o que da Londres de Baixo
possuem tretas entre si. Umas tretas bem malignas. Tirando isso, andar
por lá, se você fizer parte dela é claro, é extremamente perigoso. É
recomendável que, se você por um acaso passear por ela, não vá sozinho e
tente arranjar umas amizades que possam te proteger.
Outra
coisa que você deve saber, se por um acaso passear por lá mesmo, é que
não adianta levar dinheiro. Ele não vale de muita coisa lá, a não ser
que sejam moedas. As pessoas na Londres de Baixo conseguem as coisas por
meio de trocas entre si. E quando precisam de algo específico que
ninguém tem, vão ao mercado. Mas não é tão simples como ir ao mercado na
Londres comum. Só existe um mercado na Londres de Baixo, o Mercado Flutuante.
Ele tem esse nome pelo fato de nunca estar em um lugar só. Você tem que
perguntar a alguém onde vai ser o próximo mercado. A qualquer um mesmo.
A informação se espalha de uma forma incrível, sendo que ninguém sabe
de onde veio. Espalhada a informação, os comerciantes, ou simplesmente
quem quiser vender alguma coisa, se dirigem ao local com antecedência
para montarem suas tentas e barracas. É importante também arranjar um
canto bem afastado da barraca do povo do esgoto, pois o fedor afasta os
fregueses. Existe, inclusive, um acordo, onde diz que o povo do esgoto
só poderá participar do mercado quando ele ocorrer ao ar livre.
E para evitar que quem tenha treta com
alguém cause confusão no local, existe a “trégua do mercado”. Ninguém
pode brigar ou se tretar lá. Assim, todos podem fazer suas compras em
paz.
(Curiosidade: Existe de fato um mercado
chamado Mercado Flutuante, na verdade mais de um. Mas nesse caso são
feiras feitas em barcos)
Agora finalmente adentrando na história: ela começa apresentando Richard Mayhew, o personagem principal.
Richard é um rapaz normal de Londres, com um emprego normal em Londres, e uma noiva ideal de Londres (a Jessica).
Certo dia, Richard e Jessica estavam indo a um jantar com o chefe dela,
quando encontraram uma garota ensanguentada no chão pedindo ajuda. Ao
resolver ajudá-la, Richard embarca na maior aventura de sua vida.
Essa garota é nada mais nada menos que a Door.
Uma habitante da Londres de Baixo que possui o dom de abrir portas
(você já imagina pelo nome) em qualquer lugar, até onde não tem. O que
eu até agora não entendi foi como Richard conseguiu ver Door se ele era
da Londres de cima (se alguém ai leu e sabe o motivo, por favor me
explica).
Lady
Door, é a segunda personagem principal. Apesar de ser uma das que
precisa de alguém para protege-la enquanto anda pela Londres de Baixo,
ela é uma garota super determinada e amigável. É a filha do Lord
Pórtico, e todo mundo respeitava seu pai, que era um bom homem, e tinha o
sonho de unir toda a cidade para formar um lugar de paz e sem tretas.
Porém, sua família foi assassinada (o que acredito não ser spoiler). Os
assassinos são obviamente os vilões do livro, o Senhor Croup e o Senhor Vandemar
(o que também não é spoiler, tá?), mas o que Door deseja descobrir é a
identidade de quem os mandou matar. É o objetivo da personagem. Tudo bem
que geralmente nas histórias cada personagem tem um objetivo, mas Neil
Gaiman aperta muito essa tecla. Richard inclusive chega a perguntar aos
outros personagens qual o objetivo de cada um.
Algo que eu não sei se foi intencional é
o fato de Richard ser o nome do meio de Neil Gaiman, que se chama “Neil
Richard Gaiman”. Falando agora sobre o personagem, Richard é daqueles
que começam fracos, medrosos, dependente dos outros, e aos poucos se vê a
evolução dele, que acaba se tornando o herói da história.
Os
já citados Croup e Vandemar (que durante a minha leitura eu gostava de
chamar de Valdemar) são a dupla de vilões da história. Você deve ter
percebido que tem um vilão maior por trás, que é o chefe deles, mas como
ele permanece oculto na trama, o cargo de “vilão da história” se
enquadra muito bem aos dois. São uma dupla de assassinos cruel e
sanguinária. Fazem aquele contraste de ser uma dupla com um bobalhão e
um mais sério. O senhor Croup tem um ar mais elegante, atende o
telefone, resolve o que tiver pra resolver formalmente. O senhor
Vandemar, por outro lado, é o bruto, o que fica só esperando pra
estraçalhar alguém, e às vezes faz algumas idiotices. A dupla é daqueles
vilões extremamente cruéis e que realmente dão medo. Daqueles que
quando aparecem, você pensa “fodeu”!
Voltando para a história, quando Richard
resolve ajudar Door, e ela passa um tempo em sua casa, ele acaba se
tornando uma das pessoas que habitam o submundo. As pessoas que ele
conhece já não o conhecem, e ele aos poucos deixa de existir no mundo
comum. Ocorrido isso, o personagem ganha o seu “objetivo principal”, que
é voltar a ser um habitante da Londres de cima.
Richard,
então, sem ter o que fazer, já que não possui mais uma vida normal, e
sem ter para onde ir, acompanha Door e o seu guia, o Marquês de Carabras, em busca do anjo Islington (que na série é interpretado pelo Doctor Peter Capaldi,
apesar de no livro o anjo ser descrito como uma criatura andrógina, nem
homem e nem mulher), que, segundo o que o pai de Door deixou em seu
diário, seria alguém de confiança que a ajudaria.
O Marquês de Carabras é um personagem
secundário. Uma figura excêntrica. Daqueles personagens que nem o leitor
nem os outros personagens sabem se é confiável ou não. Pode-se dizer
também que ele é um “malandro” da Londres de Baixo. Eu, no começo,
gostava mais quando ele não aparecia, mas depois passei a gostar mais
dele. O seu objetivo é pagar sua dívida com o pai de Door, ajudando-a em
sua busca.
E o quarto membro da trupe de Neverwhere, composta por Richard, Door e De Carabras, é a Hunter.
A segunda personagem secundária. Hunter é a grande caçadora do
submundo. Totalmente bad ass e esculacha geral. Ela é contratada por
Door para ser sua guarda costas. No livro, Neil Gaiman a descreve com a
pele bronzeada e meio dourada, mas na série ela é negra, e se parece
muito com a Zula do filme Conan O Destruidor. Enquanto lia, eu a imaginava com a pele dourada mesmo, como estava descrito, e com os cabelos grandes.
E sendo um membro da trupe principal, é
claro que ela também tem seu objetivo pessoal. O objetivo de Hunter
(isso sim pode ser um spoiler, mas pequeno) é matar a “Besta de
Londres”. Ela já havia matado outras feras de outros lugares, e não
poderia dispensar essa oportunidade, embora, pra isso, ela tenha que
tomar decisões drásticas.
Existem também outros personagens bem legais, mas que acho melhor vocês conhecerem durante a leitura.
Do meu
ponto de vista, o livro nos mostra a condição humana a respeito de
mudanças. E nesse caso, mudanças bem drásticas. Richard é alguém que
vivia de forma padronizada com a qual as pessoas se acostumam. E quando
alguém se acostuma a um estilo de vida, é difícil se habituar com um
novo. Principalmente se for algo parecido com o que ocorreu na história.
Quando ele
encontrou Door, Jéssica não queria deixá-lo socorrer a garota, por medo
que se atrasassem para o importante jantar com seu chefe. Reclamou
bastante com Richard, o que foi em vão, pois ele ignorou tudo e socorreu
Door, deixando Jessica ir sozinha ao jantar. Por raiva, ela terminou o
noivado e não voltou pra casa. Isso já foi o primeiro abalo de Richard.
Perder a noiva ideal. Depois, quando ele começa a deixar de existir,
perde seu emprego por ninguém lembrar que ele existe, perde sua casa e,
por fim, toda a sua vida. De maneira drástica é obrigado a fazer parte
da Londres de Baixo.
Deixar seu
mundo perfeito foi um choque para Richard. A Londres de Baixo era um
local perigoso, onde ele não tinha amigos (inicialmente), e não sabia
como sobreviver. Tem uma cena em que Richard está sentado no escuro sem
saber o que fazer. Estava se sentindo abandonado, desamparado, com medo.
A qualquer momento poderia aparecer alguma criatura e o devorar. “E pela primeira vez em muitos anos, Richard começou a chorar“. Eu senti o drama dele. Foi nesse momento que peguei empatia com o personagem.
Como seriado, eu acho que a história não
renda novamente. Na minha opinião ficaria muito bom como um filme, mas
acho pouco provável que adaptem. Neil Gaiman já afirmou que poderia
escrever uma continuação, porém eu prefiro que ele faça mais histórias
originais ao invés de continuações.
Se você se interessou pelo livro, sinto informar que ele está esgotado por aí, mas não se preocupe. A editora Intrínseca adquiriu os direitos da obra e deve relançá-la, assim como fez com Os Filhos de Anansi. Só não sei quando. Se desejar o livro em inglês, a Livraria Cultura tem disponível, é só clicar aqui.
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