“…Uma história de fantasmas com uma sereia e um lobo.”
Assim começa “A Menina Submersa: Memórias”, escrito por Caitlin R. Kiernan.
“Este livro é o que é, o que significa que ele pode não ser o livro que você espera que seja“, adverte a autora antes de iniciarmos a leitura.
Eu poderia dizer que a história é
narrada pela personagem principal, mas ela não é apenas narrada, ela é
escrita por sua personagem principal. India Morgan Phelps, também
conhecida como Imp, nos conta suas memórias. Todas elas, as que não quer
se lembrar e as que não consegue esquecer. São memórias conturbadas e
incertas que nem a própria Imp tem certeza da autenticidade delas. Às
vezes ela lembra de coisas que não ocorreram, e além disso, nos conta
coisas que não são verdades, embora ela nos confesse depois que mentiu.
Não são mentiras graves e não afetam a história, mas mostram o que Imp
gostaria que fosse verdade e o que gostaria que não fosse. Outro detalhe
é que os fatos não ocorrem cronologicamente. Às vezes ela fala sobre
algo que ainda vai ocorrer, outras sobre fatos que já ocorreram em
eventos que ela já contou, mas havia omitido. Às vezes cita parte de um
fato, e mais tarde volta a ele. É um livro que, para algumas pessoas,
pode ser um tanto confuso.
“Vou escrever uma história de fantasmas agora“,
e ela escreve. Não fantasmas espíritos de pessoas mortas. Fantasmas são
qualquer coisa, sejam pessoas, situações ou memórias, que possam
assombrar alguém. “Ninguém nunca dissera que você deveria estar morto e enterrado para ser um fantasma. Ou, se alguém disse, estava errado.” E Imp é constantemente assombrada por suas memórias.
“Assombrações são como memes, em
particular, transmissões de ideias perniciosas, doenças contagiosas
sociais que não precisam de hospedeiro viral nem bacteriano e são
transmitidas de milhares de modos diferentes.“
É um livro profundo. Não parece ser
ficção, enquanto lia, era como alguém conversando comigo, contando sua
vida. É como uma perturbadora auto-biografia. Imp se sente muito
sozinha, as pessoas que a fazem bem e que ela passa a amar, vão embora.
A única coisa sempre presente é a solidão, por isso ela conversa consigo
mesma. Ela escreve, ela lê, debate sobre, reclama com ela própria e
fala de si mesma para si mesma na terceira pessoa. É a única forma que
ela tem de desabafar.
“Claro que nunca conheci uma pessoa inocente. No fim das contas, todo mundo machuca alguém, por mais que tente não machucar.”
Imp
se define como louca. Sua mãe era louca e sua avó também. Sua psicóloga
a define como esquizofrênica. E sua esquizofrenia está bem clara em sua
escrita. É uma leitura conturbada, e você pode se envolver
psicologicamente.
“A normalidade é um comprimido amargo do qual reclamamos.“
Na infância, Imp se encantou por um
quadro chamado “A Menina Submersa”. Ela o enxergou como uma janela e
quase o tocou, se sua mãe não a tivesse impedido. O quadro nunca saiu de
sua cabeça. Mais tarde, enquanto convivia apenas consigo mesma e com a
solidão, Imp conhece Abalyn, uma garota transexual com quem vive uma
história de amor que acompanhamos no decorrer da trama. O papel de
Abalyn é extremamente importante. Ela é o alicerce entre Imp e sua
loucura. Quando Abalyn não está presente, a loucura de Imp desaba sobre
ela. E sobre o leitor também.
Abalyn é seu alicerce, e Eva é sua ruína.
Eva é uma sereia, um lobo, e
posteriormente se torna um fantasma. E assim como fantasmas, em “A
Menina Submersa: Memórias”, sereias também não são apenas criaturas
humanas com calda de peixe. Sereias são qualquer coisa que possa
encantar alguém e, desta forma, atrair este alguém para a morte. “Sereias
são pensamentos intrusos que até homens e mulheres lúcidos têm. Você
pode chamá-los de sereias ou de assombrações. Não importa. Depois que
Odisseu ouviu as sereias, duvido que ele tenha esquecido a canção. Ele
teria sido assombrado por ela durante o resto da vida. Mesmo depois da
terrível jornada de vinte anos, da competição de arco e flecha, mesmo
depois de ter Penélope de volta e de a história ter um “final” feliz,
ele ainda deve ter sido assombrado pela canção, nos sonhos e quando
estava acordado. Ele sempre via o mar ou o céu.”
Imp tem um carro, e possui o hábito de
sair às vezes, tarde da noite, para dar um passeio. E em um desses
passeios, ela encontra Eva Canning. Eva estava nua, assim como “A Menina
Submersa”, em pé na beira da estrada. Ao parar para aquela figura, Imp
inicia a maior e mais perturbadora experiência de sua vida.
Imp, então, leva Eva para casa (Abalyn
não gostou nada disso), lhe dá roupas e deixa a moça passar a noite lá.
Misteriosamente Eva sabia o nome das duas garotas, embora nenhuma delas
havia se perguntado como ela sabia. Eva não falava muito e não respondia
as perguntas de Imp sobre de onde ela vinha e o que fazia nua na beira
da estrada. Eva foi embora no dia seguinte, mas Imp nunca a esqueceria.
Daí pra frente a história fica ainda
mais perturbadora. É difícil definir um gênero. Eu considero drama com
terror psicológico. Drama é certamente um gênero bastante encaixável, a
parte do terror psicológico se deve à conturbada narrativa
esquizofrênica. Também tem um pouquinho de fantasia, mas isso fica a
critério de quem lê, pois como devem ter percebido, os fantasmas e as
sereias são termos metafóricos. Tem algo sobre Eva que não é metafórico,
mas isso deixo para você descobrir quando ler o livro.
“Vou escrever uma história de fantasmas agora.” “Uma história de fantasmas com uma sereia e um lobo.” Estas
são as primeiras frases do livro. No que se trata a respeito de
fantasmas e sereias, já foi explicado. Mas e o lobo? Falarei sobre ele
nas partes negativas do livro.
As Partes Negativas do Livro:
Foram apenas duas partes que me
incomodaram. Mas como você é um leitor diferente de mim, pode ter uma
impressão diferente quando conferir a obra.
Imp é uma excelente pintora, essa é sua
verdadeira vocação. Mas além disso, ela também tem um excelente talento
que não explora tanto; escrever. No livro, lemos dois contos escritos
pela própria India Morgan Phelps. Meu problema mais leve foi com o
segundo conto. Um conto de 20 páginas cansativo e chato de ler.
7/7/7
7/7
7
O segundo problema foi o capítulo 7. E ai vem a parte do lobo e a maior piração do livro (pode conter spoilers).
Eva Canning é a sereia, e também o lobo. Mas como já foi citado antes,
as memórias de Imp são muito confusas, e ela possui duas lembranças
diferentes de um único fato, a noite em que conheceu Eva. Uma em junho, o
que seria a versão verídica, onde Imp a encontra na estrada, e uma em
novembro, quando Imp estava sozinha. Em junho uma sereia, e em novembro
um lobo. Na parte de novembro Imp está sozinha, abandonada, sem tomar
seus remédios e em extrema depressão. Então nos deparamos com a parte
mais conturbada e perturbadora do livro, o capítulo 7, onde Imp nos
conta como conheceu a Eva lobo e eu não entendi nada. Me perdoem, mas eu
não entendi. Por esta razão, ficarei devendo a explicação metafórica a
respeito dos lobos (7/7/7).
Ainda falando sobre as partes negativas, irei agora justificá-las (pode conter spoilers outra vez).
O segundo conto foi a maneira de Imp exorcizar um de seus fantasmas. O
capítulo 7 é a interpretação diferente de um fato que Imp nos descreve
depois. Uma interpretação esquizofrênica e psicológica. Então, os meus
pontos negativos não são desculpas para não querer ler o livro, ok?
A Menina Submersa: Memórias
também tem partes fofas e agradáveis. Principalmente as que se referem a
convivência de Imp com Abalyn. As duas formam um contraste muito bom.
Abalyn é uma garota geek que adora videogames, cinema e música
psicodélica. Imp é uma garota mais cult e reservada, gosta muito de
livros, não tinha TV em casa e adora músicas dos anos 70 pra baixo. O
vocabulário de Imp é riquíssimo de palavras pouco usadas, o que sempre
fazia Abalyn dizer que ninguém usa a palavra dita por Imp. Isso virou
quase um bordão. “A linguagem é um meio de comunicação pobre do jeito que está. Por isso deveríamos usar todas as palavras que temos“, disse Imp uma vez parafraseando Spencer Tracy em O Vento Será Tua Herança.
Inclusive, o livro está cheio de
referências a outros livros e a músicas. Muitas músicas são citadas.
Inclusive, a Raquel Moritz do site Pipoca Musical criou até uma playlist no Spotfy com todas as músicas citadas no livro. Além disso, também percebi algumas ideias sutis a respeito de religião e sociedade.
“Não acredito em pecado, nem no
original nem em outro, mas acredito que as pessoas fazem mal a outras e
que imaginar que isso pode ser diferente é pedir para se decepcionar.“
A Menina Submersa: Memórias foi
publicada pela editora DarkSide Books em duas edições diferentes. A
primeira foi a edição clássica com capa em brochura, e a segunda foi uma
linda edição limitada com capa dura em alto revelo que me encantou de
cara quando bati o olho. Nem tem muito o que falar sobre essa edição de
tão linda que é. As ilustrações no início do livro também são muito boas
e dão um encanto a mais a obra. Vale muito a pena ter o livro impresso
na sua estante.
E já ia me esquecendo. A versão original do livro, The Drowing Girl: A Memoir, tem um trailer dirigido pela própria Caitlin R. Kiernan:
“Não vejo muita resolução no
mundo; nascemos, vivemos e morremos, e no fim disso há somente uma
confusa feira de negócios inacabados.“
Título | A Menina Submersa: Memórias
Autor | Caitlin R. Kiernan
Tradução | Ana Resende e Carolina Caires Coelho
Editora | DarkSide®
Especificações | 320 páginas, capa dura
À venda nas seguintes livrarias:
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